2010/05/29

Saramago e as Vivências das Nossas Comunidades

Há tempos havia prometido a mim próprio que não voltaria a escrever, assim tão cedo, sobre as nossas comunidades. Primeiro, porque muito do que se poderá escrever será repetitivo, segundo porque quando se diz algumas verdades, acaba-se sempre por importunar alguém. Acontece que recentemente na cerimónia que tivemos em Tulare (os jovens alunos da associação estudantil SOPAS) para homenagear alunos e membros da nossa comunidade local, o MVPA (a 2 de Maio de 2010), o segmento cultural foi dedicado ao nosso Nobel da Literatura (nosso, por ser o primeiro, e até à data único, em língua portuguesa) José Saramago. Ao longo desse evento, ao falarmos de Saramago, citámos algumas frases memoriais do escritor, as quais levaram-me a reflectir, ainda mais uma vez, as nossas comunidades. Porque como o nosso Nobel da Literatura: não só escrevo - escrevo quem sou.
Apesar de saber que somente escrever que sou leitor de José Saramago, que o aprecio imenso como escritor, será, para muita gente que nunca o leu, nunca o soube ler, um verdadeiro ultraje, um sacrilégio, mas utilizarei algumas das suas enunciações para tecer umas breves observações sobre as nossas comunidades portuguesas em terras californianas. Até porque nunca pedi nem permissão, nem desculpa, por aquilo e aqueles que li e que leio. Começo então com a expressão que me levou a esta reflexão e a escrever sobre uma das minhas paixões: as nossas vivências de comunidades emigrantes e luso-descendentes no multiculturalismo americano. Essa frase foi: as palavras não foram dadas aos homens para que escondessem os seus pensamentos. Como não sou de esconder pensamentos, aí vão algumas despretensiosas anotações.
Para o bem e para o mau, as comunidades são parte da minha vida. Há muito anos que as vivo, estudo, e reflicto. Aliás, recordo-me que na, não tão longínqua década de 1990, uma amiga minha disse-me, clara e inequivocamente: sai da comunidade porque ela aniquila muito do teu tempo e nunca serás uma pessoa de sucesso. Não segui a sua sugestão. Talvez o deveria ter feito, -até para sossego de muita gente. Porém não o fiz, e continuo mergulhado nas comunidades. Mas também nunca me preocupou o sucesso. Aliás, sucesso poderá ser definido de muitas formas. Mas o que nunca fiz, e nunca farei, é seguir os passos que muitos nestas nossas comunidades têm dado, ou seja: utilizá-las para seu próprio interesse, para construírem o seu próprio altar. E isso acontece nas formas mais variadas. Basta olharmos um pouco à nossa volta. É que tal como Saramago magistralmente escreve: O egoísmo pessoal, o comodismo, a falta de generosidade, as pequenas cobardias do quotidiano, tudo isto contribui para essa perniciosa forma de cegueira mental que consiste em estar no mundo e não ver o mundo, ou só ver dele o que, em cada momento, for susceptível de servir os nossos interesses. Daí continuarmos, em muitos aspectos, rodeados dum amadorismo cada vez mais assustador. Porque, infelizmente, esse diletantismo serve para que muita gente, nestes nossos meios comunitários, permaneça, injustamente, em cargos de liderança. Se é verdade que em terra cegos quem tem um olho é rei; não é menos verdade que não somos uma comunidade de cegos e ao contrário do provérbio popular acredito mais na celebre frase do Nobel português: em terra de cego quem um olho acaba por cegar.

Porque, como nos disse José Saramago "cada dia traz sua alegria e sua pena, e também sua lição proveitosa,"' persisti, durante vários anos, em direcções de algumas das nossas organizações e ainda trabalho com muitas. Tem sido uma verdadeira escola, porque e ainda outra enunciação do Nobel português: se podes olhar, vê. Se podes ver, repara. E reparei que um dos nossos infortúnios é termos pouquíssimo espírito crítico. É que ficámos tão entusiasmados com os auto-elogios que esquecemo-nos de que a análise, a crítica positiva, a reflexão honesta e descomplexada são elementos imperativos para qualquer organização. Permitam-me contar-vos um pequeno incidente que ocorreu quando fiz parte, durante mais de uma década, de uma das nossas organizações portuguesas aqui neste estado, e na região onde vivo. Tinha por hábito analisar o que se fazia, pedia que fôssemos mais meditativos, que pensássemos a organização e a comunidade que tínhamos e a que queríamos ter. Que olhássemos além dos interesses da comunidade de hoje e que construíssemos a comunidade de amanhã. Até cheguei a sugerir retiros culturais e sessões para preparação de futuros líderes.
Claro que tudo isto era, para muita gente, uma simples chatice. E quando porventura se analisavam alguns eventos, algumas actividades, raramente se examinava a qualidade. O que era importante era a quantidade. Porque tudo tem o seu tempo, e o seu espaço, e nada pior do que se estar num lugar onde não nos querem, onde a exigência da qualidade é um estorvo, saí dessa direcção. Foi dito e redito, que depois da minha partida é que havia "paz na organização...nada se questionava...tudo corria lindamente." Tanta paz que tudo o que se fez culturalmente durante pouco mais de uma década foi enterrado a sete pés. Tudo correu tão lindamente que hoje, nem a quantidade pode ser motivo de regozijo. Porque tal como afirmou Saramago: de repente o futuro tornou-se curto.
As nossas comunidades precisam de examinarem-se, de mais reflexão. Com cada dia que se passa o futuro escapa-nos. Estamos estáticos entre o saudosismo da comunidade emigrante que santifica a cultura popular, santificação que é particularmente abençoada pela nossa comunicação social, e as novas gerações que se educam, que têm cada vez maior preparação e que olham para muito do que fazemos como acções de gueto e algumas até mesmo bastante medíocres. E todo o mundo sabe que mediocridade puxa mediocridade. Daí que não seja assim tão difícil compreender-se a razão (ou as razões) porque a vasta maioria dos nossos jovens (refiro-me aos jovens recentemente licenciados e doutorados - entre as idades dos 22 aos 33 anos) não têm o mínimo interesse em mergulhar nas nossas comunidades. Há que assumir-se essa realidade, a vastíssima maioria dos jovens adultos talentosos, afasta-se das vivências comunitárias e acho que todos nós sabemos porquê, só que ninguém quer falar nisso, nem assumir responsabilidades: daí mais uma frase de Saramago: o melhor caminho para uma desculpabilização universal é chegar à conclusão de que, porque toda a gente tem culpas, ninguém é culpado.
Aqui ficam mais estes reflexos sobre as nossas comunidades. Há muito mais para escrever. E há que termos coragem de desmistificá-las. Nem tudo é um mar de rosas. Temos associações extremamente interessantes e importantes nas nossas comunidades, mas também estamos cheios de organizações e eventos que não nos dignificam como comunidades. E as manchetes (ou noticias, crónicas ou reportagens) fictícias sobre as nossas comunidades nos nossos jornais, assim como as palavras de elogios fáceis nas rádios em nada ajudam a reflexão urgente que precisamos ter, antes pelo contrário alimentam o ilusório, são prejudiciais.
Alguns dirão que isto é pessimismo, mas parafraseando José Saramago: os pessimistas é que mudam o mundo porque os optimistas estão sempre satisfeitos com tudo. Se não olharmos à comunidade com olhos que tenham algum espírito critico, jamais mudaremos o que é essencial mudar-se. Saramago escreveu que "a nossa maior tragédia é não saber o que fazer com o mundo." Acho que é uma analogia perfeita para as nossas comunidades